26-08-2019

1989: o ano em que a economia enlouqueceu

LEANDRO NARLOCH Jornalista e escritor.
LEANDRO NARLOCH Jornalista e escritor.

LEANDRO NARLOCH
Jornalista e escritor.

Uma tragédia, um fiasco e uma banana marcaram o início de 1989 no Brasil. O país acordou no 1º de janeiro com a busca por náufragos: durante a festa de réveillon, o Bateau Mouche afundara por excesso de peso na Baía da Guanabara, causando a morte de 55 dos 162 passageiros. O barco levava mais que o dobro de passageiros que o permitido. Duas semanas depois, o presidente José Sarney anunciava o Plano Verão, a quarta tentativa de combater a inflação naquele governo. Muita gente relacionou um acontecimento ao outro. “O novo pacote é como o Bateau Mouche”, disse naquela semana um administrador de 34 anos a um repórter da Folha de S. Paulo. “Não tem estabilidade, é dirigido por um bando de incompetentes e não sabe para que lado pende.” Entre esses dois episódios, no dia 6 de janeiro, foi ao ar o último capítulo da novela “Vale Tudo”. Na cena mais célebre, o milionário interpretado por Reginaldo Faria fugia do país para escapar de denúncias de desvio de dinheiro. Na cabine de um jatinho, sobrevoando o Rio de Janeiro, ele faz uma “banana” com os braços, o gesto de puro desprezo. A cena expressou como nenhuma outra um sentimento comum na época: o país afundava e parecia que muita gente não estava nem aí para isso.

Aquele começo de ano anunciava que pelo menos no Brasil não era um bom momento para ter esperanças. Por isso é espantoso saber que, exatamente nesse ano, alguém teve coragem de inaugurar por aqui não só uma fábrica, mas uma fábrica de grande porte de latas de alumínio para bebidas. Abrir um negócio ou investir no Brasil daquela época exigia uma dose de coragem, idealismo e talvez até um tanto de loucura. Para decidir um investimento, empresários costumam analisar a estabilidade de um país, a previsibilidade da economia e da política, os rumos das contas públicas e o custo de oportunidade. Esses critérios não davam respostas otimistas.

A inflação – ou melhor, a hiperinflação – chegaria a 55% em dezembro. Continuaria subindo em 1990, até atingir 83%. “Foi o tempo em que a economia enlouqueceu”, conta Miriam Leitão em “Saga Brasileira”, livro sobre a luta contra a desvalorização da moeda no Brasil. No pacote de janeiro, a equipe de Sarney cortou três zeros do Cruzado e criou o Cruzado Novo (NCr$). Eu tinha 11 anos e ainda me lembro bem de receber uma nota de 1.000 cruzados com a imagem de Machado de Assis – ela ganhou um carimbo triangular e passou a valer um cruzado novo. A Casa da Moeda funcionava 24 horas por dia: as cédulas valiam tão pouco que era preciso imprimi-las sem parar. Com os preços sem controle, as pessoas corriam às compras assim que recebiam o salário. No supermercado, minha mãe e os outros consumidores faziam compras enormes, de dois carrinhos cheios. Em casa, ela improvisou uma dispensa – outra moda na época – para guardar o estoque de produtos. Fazia sentido investir em alimentos: o preço deles chegou a subir mais de 200% num único mês.

Impossível falar sobre 1989 sem citar o overnight, investimento que rendia juros diários. A correção era tão alta que, para muita gente, valia a pena deixar de pagar as dívidas – as multas e juros previstos nos contratos de empréstimo ficavam abaixo da correção do overnight. Era comum tomar dinheiro emprestado, dar o calote, deixar o dinheiro no banco e depois pagar uma dívida que já tinha se desvalorizado. Nas lojas de varejo, consumidores recusavam descontos de 30% ou 40% à vista por saber que, no overnight, o dinheiro renderia mais – até 80% num único mês.

Imagine o desafio de se prever lucros e calcular custos de produção numa loucura como essa. Tão alta a demanda, faltavam calculadoras no país. Para piorar, ainda vigorava a Lei da Informática, que proibia a importação de computadores. A Polícia Federal chegou a prender gerentes de bancos por flagrar computadores importados nas agências. A telefonia, ainda controlada por estatais, tampouco ajudava. Alugar linhas telefônicas era um negócio comum e lucrativo: rendia 3% ao mês, muito mais que um bom aluguel imobiliário. A simples compensação de um cheque de outro estado levava dias para ocorrer.

Era uma situação muito mais grave que a atual do Brasil. Hoje sabemos que, se o governo reformar a Previdência, o que qualquer presidente um pouco sensato vai decidir fazer, o país volta ao rumo. Não era assim em 1989. O governo mal tinha um sistema preciso para apurar gastos e receitas. Os bancos estaduais criavam suas próprias dívidas. Depois de tantas tentativas, ninguém mais acreditava nos planos econômicos de Sarney. O próprio presidente parecia ter desistido de resolver o problema. O país ainda sofreria mais cinco anos até o Plano Real pôr alguma ordem na casa.

Mas se no Brasil a situação era desanimadora, no Hemisfério Norte havia, sim, motivos para ser otimista. O fim dos anos 1980 marcavam o ressurgimento das ideias liberais e o sepultamento do comunismo, já moribundo havia muitos anos. Segundo o Financial Times, Margaret Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido, tinha aprovação de 73% dos eleitores. Passava de dez anos no poder – o mandato mais duradouro em 160 anos de política britânica. Nos Estados Unidos, Ronald Reagan deixava a presidência com a maior aprovação da história moderna do país. Esses dois líderes deram um recado ao mundo: era tempo de privatizar e deixar os empreendedores falarem mais alto que os burocratas. A nova era ganhou um marco histórico no dia 9 de novembro de 1989: a queda do Muro de Berlim marcava o fim da revolução comunista de 1917 – um belo fim para o século 20. Outro marco interessante ocorreu em 31 de janeiro de 1990, quando o primeiro McDonald’s abriu na Rússia. Provocou filas enormes e atendeu 30 mil pessoas no dia da inauguração.

A queda do Muro de Berlim ressoou no Brasil. Fernando Collor ganhou a eleição de 1989 com discursos que pareciam traduções das palavras de Margaret Thatcher. De repente, as privatizações e eliminação de barreiras de importação – até então recusadas pelo Congresso – conquistaram a maioria dos deputados. Assim começaram reformas e privatizações sem as quais o Plano Real, de 1994, não seria possível (assim como o crescimento econômico que houve em seguida). Parecia uma loucura abrir fábricas no Brasil em 1989 – mas, no longo prazo, a decisão foi um enorme acerto.