07-06-2018

O mar não está para plásticos

FERNANDA DALTRO Head Campaigner na ONU Meio Ambiente, responsável pelas estratégias de campanhas do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente no Brasil e coordenadora da campanha #MaresLimpos.
FERNANDA DALTRO Head Campaigner na ONU Meio Ambiente, responsável pelas estratégias de campanhas do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente no Brasil e coordenadora da campanha #MaresLimpos.

FERNANDA DALTRO
Head Campaigner na ONU Meio Ambiente,
responsável pelas estratégias de campanhas
do Programa das Nações Unidas para o
Meio Ambiente no Brasil e coordenadora
da campanha #MaresLimpos.

Nos últimos vinte anos, o problema do lixo nos oceanos se tornou ainda mais sério com a proliferação de resíduos de descartáveis e de microesferas de plástico. Estima-se que entre 60 e 90% do lixo encontrado nos mares é composto por diversos tipos de plástico, em diferentes tamanhos e estágios de degradação. A menos que façamos algo agora, até 2050 haverá mais plástico do que peixes nos mares do Planeta. É o que alerta a ONU Meio Ambiente.

Fernanda Daltro, gerente de campanhas da organização, conversou com a Revista da Lata sobre a campanha global Mares Limpos, lançada em 2017 com o objetivo de enfrentar esse cenário alarmante.

A campanha atende aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização da Nações Unidas (ONU) número 14, que diz respeito ao uso sustentável dos oceanos, e número 12, que trata de consumo e produção sustentáveis.

 

Revista da Lata – Por que a Organização das Nações Unidas decidiu apostar na campanha Mares Limpos?

Fernanda Daltro – O programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente é o responsável pela agenda global do tema, sempre atento às emergências ambientais. O tema do lixo no mar não é novo. Já acompanhamos os estudos e pesquisas ao longo de décadas, no mundo inteiro, mas a questão se tornou urgente.

Estamos em um momento de crescente produção de plástico. Na década de 1950, ela era de 1,5 milhão de toneladas, em 2015 passou para 300 milhões de toneladas, tendo aumentado exponencialmente na última década, quando se duplicou a quantidade de plástico produzido no Planeta. Uma parte considerável desse material é para aplicações de uso único.

 

RL – E qual é o impacto dos padrões de consumo nesse cenário?

Daltro – A contribuição do ser humano para o flagelo dos oceanos ficou patente há alguns anos, resultado de suas atividades econômicas e hábitos de consumo. O plástico descartável consumido às toneladas, estimulado pela sociedade de consumo e pelas escolhas das empresas por produtos mais baratos, acaba provocando uma epidemia do material nos oceanos.

 

RL – Além da poluição e da morte de animais marinhos, quais são os outros riscos da presença do plástico nos oceanos?

Daltro – O plástico que chega aos mares tem um impacto significativo principalmente nos seres vivos desse ambiente. Aves marinhas estão alimentando seus filhotes com ele. Todos os níveis da cadeia alimentar estão se alimentando de plástico, no mar e fora dele. Chegamos ao absurdo de ter zooplânctons [grupo de organismos que flutuam em ambiente marinho e de água doce] ingerindo plástico.

Existem diferentes níveis de resíduos de plástico, resíduos grandes (como navios naufragados, containers perdidos, redes de pesca descartadas), médios (como sacolas plásticas e recipientes) e os micro e nanoplásticos, com menos de cinco milímetros (como microfibras de roupa e microesferas de cosméticos). Todos eles passam por um processo de degradação e ao longo do tempo uma garrafa, por exemplo, transforma-se em microplástico, chegando ao tamanho microscópico que pode ser ingerido por um zooplâncton.

Se a base da cadeia alimentar do Planeta está se nutrindo de plástico, ela estará malnutrida, não vai crescer e nem se reproduzir como deveria. Além disso, o plástico já carrega seus próprios químicos e é um agregador de outros componentes, resíduos tóxicos e poluentes orgânicos persistentes, que se aderem a ele. A criatura que come esse material está ingerindo esses químicos também.

 

RL – E como isso afeta os seres humanos?

Daltro – Temos uma seríssima ameaça aos seres vivos, inclusive para nós, humanos. Não se sabe ainda em que nível estamos ingerindo plástico. Na cadeia alimentar, um peixe de tamanho razoável vai ingerir plástico. Aquele resíduo não vai parar nos tecidos, que é o que comemos, fica restrito ao trato digestivo do peixe. No entanto, os químicos vão permear aquela criatura e isso é uma possibilidade de contaminação. Outra possibilidade é a própria ingestão pelo peixe de outros animais que já ingeriram plástico. Outra forma ainda é comermos diretamente, por exemplo, um molusco, mexilhão ou camarão que ingeriu plástico.

Mas um problema talvez muito pior do que o plástico que a gente vê é a microfibra sintética, que não é visível. O que vem se percebendo em estudos é a existência de microfibras de plástico até mesmo no sal marinho. Uma pesquisadora colocou no microscópio um pouco de sal e, em menos de cinco minutos, encontrou uma microfibra sintética nesse produto que consumimos. As microfibras de plástico estão também nas águas engarrafadas e de torneira do mundo inteiro porque todas as nossas roupas têm fibras sintéticas, que são perdidas conforme a roupa vai sendo lavada. Vai tudo para a água.

 

logo_mares_limposRL – Como surgiu a campanha Mares Limpos?

Daltro – Em 2011 foi realizada a 5ª Conferência Internacional de Detritos Marinhos, em Honolulu (Havaí, Estados Unidos), onde foram estabelecidas as estratégias de Honolulu, que são algumas formas de combater esse lixo que está chegando ao mar.

 

Não aconteceu outra grande reunião até a Conferência sobre os Oceanos, em junho de 2017. Em fevereiro desse mesmo ano, diante de todas essas informações e provas documentais da gravidade do problema, a ONU Meio Ambiente lançou a campanha Clean Seas, na Indonésia, um dos maiores contribuintes do plástico que chega aos oceanos. Em junho lançamos a campanha no Brasil com o nome Mares Limpos. Em setembro o governo brasileiro aderiu à campanha globalmente.

 

RL – Quantos países já aderiram e quem não aderiu?

Daltro – Até o momento 42 países aderiram. Os Estados Unidos e a China, por exemplo, estão fora da campanha.

 

RL – O que significa aderir à campanha?

Daltro – Ao aderir, você demonstra o apoio do seu país àquela campanha. Mas não necessariamente precisa fazer um compromisso mais sério, e isso foi o que aconteceu no Brasil. O governo brasileiro aderiu à campanha, apoiando, trabalhando junto em algumas ações, mas não se comprometendo a mais nada. Outros países, no entanto, também aderiram, mas se comprometeram de alguma forma mais substancial. O Quênia, por exemplo, decidiu banir sacolas plásticas. Aqui no Brasil, uma das iniciativas é construir o Plano Nacional de Combate ao Lixo no Mar. Parte dos compromissos do Brasil na Conferência dos Oceanos foi o desenvolvimento desse Plano.

 

RL – Qual a importância desse Plano?

Daltro – Ele é importante e estamos apoiando porque no escopo de um Plano Nacional podemos colaborar de várias maneiras, como com o banimento de sacolas plásticas no país, a instituição de cobranças ambientais e o desenvolvimento de alguns instrumentos legais que podem vir a ter um impacto positivo no problema do plástico nos oceanos.

 

RL – Em que momento o Brasil está agora?

Daltro – Fizemos no ano passado o Primeiro Seminário Nacional sobre Combate ao Lixo no Mar, que impulsionou o desenho de uma estratégia nacional. O primeiro passo é fazer um diagnóstico do quanto o Brasil está contribuindo para o problema. Temos uma costa de quase 8 mil km de extensão e voltada para o Atlântico. A quantidade de rios que desembocam no mar é imensa e uma grande parte da nossa população está concentrada no litoral. Dessa forma, nossa contribuição na poluição dos mares é considerável.

Aqui no Brasil já temos a Política Nacional de Resíduos Sólidos, que está lutando para ser implementada. Temos pouquíssima coleta seletiva, um nível de reciclagem baixíssimo, inclusive do plástico que, ainda que seja relativamente bom em termos globais, é baixo frente ao volume produzido.

 

RL – O que a campanha está fazendo no Brasil?

Daltro – No Brasil a campanha está apoiando o desenvolvimento do Plano Nacional de Combate ao Lixo no Mar, identificando junto ao Ministério do Meio Ambiente quais são as fontes de poluição e o que podemos fazer para mudar esse cenário por meio de políticas públicas junto aos estados costeiros e o Governo Federal. Além disso, realizamos ações de awareness com o objetivo de sensibilizar o público com alguns conceitos relacionados ao tema.

 

RL – Quais são as principais medidas para lidar com o problema do plástico nos oceanos?

Daltro – Isso passa por um mosaico de soluções. Entre elas, as possibilidades de migração de embalagens sem reciclagem para embalagens com alta reciclabilidade. Identificamos alguns movimentos, como o da Economia Circular. A Ellen MacArthur Foundation tem uma iniciativa chamada The New Plastics Economy que estuda a economia do plástico, o paradigma do uso desse material e como podemos mudar o atual quadro.

Como saímos de uma aplicação genérica e não discutida do plástico e passamos a adotar um olhar mais responsável? Se você não consegue reciclar, não produza. Uma das coisas mais chocantes que vimos é a migração do molho de tomate de latas de alumínio ou de aço para o pouch, um sachê de plástico laminado que não é reciclável. É extremamente mais barato e muito menos pesado. Há um ganho na emissão de gases de efeito estufa inegável porque um volume maior é transportado. Por outro lado, é gerado um resíduo que não pode ser reciclado. Vai virar lixo.

O que a Economia Circular acaba trazendo é a necessidade de pensar fora da caixa. Talvez o extrato de tomate pudesse ser vendido de uma maneira completamente diferente, a granel por exemplo. Parece muito radical e ao mesmo tempo é um retorno a hábitos que a gente tinha no passado. Já existe um movimento de mercearias e mercados sem embalagem, onde tudo é vendido a granel.

 

RL – Um estímulo tributário ambiental pode ser uma solução?

Daltro – É absolutamente necessário. A bitributação é um dos fatores que dificultam para se avançar na reciclagem no Brasil. Quanto mais bem estruturadas, quanto mais as cooperativas de reciclagem tiverem a capacidade de ser um negócio e não uma situação de pobreza, que coloca as pessoas numa coleta com risco, melhor.

Elas vão atingir essa melhor estruturação do seu próprio negócio quando o mercado respeitar e pagar o preço certo pelo material que está comprando. Isso não vai acontecer se a bitributação continuar existindo. Não interessa para a indústria pagar duas vezes pela matéria-prima para fazer o mesmo produto.

 

RL – A bitributação de resíduos reciclados realmente é um problema. Mas o que acha de uma medida tributária para estimular produtos de baixo impacto ambiental?

Daltro – Acho superinteressantes incentivos e desincentivos econômicos. O Brasil não consegue avançar nessa discussão porque a turma da Fazenda é muito agarrada a seus impostos e taxas. Temos dificuldade em fazer passar qualquer diminuição ou aumento de imposto em relação a meio ambiente. Para se ter uma ideia, o Ministério do Meio Ambiente tem um departamento chamado Produção e Consumo Sustentáveis. Uma função muito clara de um departamento como esse seria discutir ações de incentivo econômico. Mas isso sequer aparece no plano de ação. É tabu conversar sobre isso no Brasil.

 

RL – Isso é só no Brasil ou existem países que adotam esse tipo de estímulo?

Daltro – O que eu conheço do exterior são as taxas visíveis (visible fees), onde se paga um valor a mais por levar uma embalagem que tem um custo maior para ser reciclada. Por exemplo, entre uma lata de alumínio e um pet, você vai pagar uma visible fee maior pela garrafa e quando devolver a embalagem recebe a taxa de volta. O consumidor acaba tendo um desincentivo econômico para comprar e a indústria também pode começar a se balizar dentro das escolhas do consumidor.

Eu acho que alguns governos são mais incisivos, talvez porque estejam mais equilibrados nas outras questões de impostos, talvez até de corrupção, ou por pura maturidade mesmo. Por exemplo, a Grã-Bretanha está estabelecendo um plano de redução significativa do uso de plástico descartável em dez anos. A União Europeia tem uma diretiva para todos os países para que até 2025 todos os plásticos que forem utilizados sejam reciclados. Eles conseguem fazer as coisas mais impositivas e audaciosas, talvez porque já tenham resolvido outros problemas.

Acho que o Brasil ainda se pega tendo que resolver seu dever de casa básico e não abrimos mão de determinadas coisas. A Fazenda não abre mão dos seus impostos, não quer discutir o Imposto Verde, que são políticas que impulsionam um círculo virtuoso muito bom.

 

RL – Qual é a expectativa da campanha?

Daltro – Mesmo dentro de um espectro maior de dificuldade, teremos líderes que vão fazer diferença. Como a Abralatas, que tem o interesse legítimo e justo na migração das embalagens do plástico para o alumínio. O Renault Castro, presidente executivo da Associação, faz um trabalho importante com relação à bitributação, levantando informação, trabalhando, uma hora essa liderança consegue achar outra que entenda esse discurso e comece a mexer nas coisas.

Fizemos um grande esforço no caso das embalagens de sacola plástica focando na produção de lixo, nos impactos na cidade, como elas entopem bueiros, prendem-se a fios de alta tensão, mas talvez essa relação com o lixo não seja tão interessante para conversar com as pessoas porque elas não querem saber disso. Por outro lado, quando falamos do mar, mostramos que o lixo está chegando ao mar, temos um outro apelo. Parte da campanha no Brasil é trabalhar esses temas, usando o apelo do mar para revermos os nossos padrões de consumo em terra.

 

Foto vencedora do concurso mundial de fotografia da Campanha CleanSeas (Mares Limpos, no Brasil) na categoria macro, promovido pela ONU Meio Ambiente. No detalhe, microfibra de plástico presa a um cristal de sal marinho.

Foto vencedora do concurso mundial de fotografia da Campanha CleanSeas (Mares Limpos, no Brasil) na categoria
macro, promovido pela ONU Meio Ambiente. No detalhe, microfibra de plástico presa a um cristal de sal marinho.