05-08-2015

Sucesso com susto. Para os outros

Maio de 1995. Feira de negócios em São Paulo, lotada de gente envolvida na indústria de embalagens e bebidas. Encontro um amigo querido, de família dona de uma gigantesca indústria de latas de aço. Ele é sempre uma ótima conversa, inteligente e educado.

Pergunto o que pensa naquela data, passados mais de cinco anos da instalação da primeira indústria de latas de alumínio para bebidas no Brasil (Latasa), que tirou o mercado das embalagens de aço em menos de seis meses, lá no longínquo 1989. A resposta veio num meio sorriso: “Se arrependimento matasse… Cansei de argumentar com meus colegas que a gente não poderia ficar fora dessa”.

A embalagem de aço, alternativa à tradicional embalagem de vidro para cervejas, era formada por três peças: o corpo, com uma solda lateral, fundo e tampa. A de alumínio, por duas peças, corpo e tampa. Pesava um terço da concorrente.

Quando a Reynolds Metals saiu da Virginia/EUA e veio ao Brasil, escoltada pelo Bradesco e Credibanco, para tentar construir a primeira planta de produção de latas para bebidas de alumínio, encontrou um ambiente hostil ao capital estrangeiro. Era tempo de protecionismo escancarado para os empresários nacionais. Levou mais de cinco anos para conseguir a licença de importação das máquinas que fariam as latinhas, que vieram (usadas) de Porto Rico.

A cidade escolhida foi Pouso Alegre, em Minas Gerais, graças em grande parte ao empenho do então governador Hélio Garcia. Sujeito estranho, de poucas palavras, que usava calça de uma cor e paletó de outra, brigou com o governo federal e conseguiu liberar a licença de importação.

Depois que as primeiras latinhas saíram da fábrica, para a Skol, até que a embalagem de aço perdesse 100% do mercado, passaram-se apenas seis meses. Um dos motivos da resistência do pessoal do aço em aderir ao alumínio era o fato de que tinham todo o mercado de 300 milhões de latinhas por ano e projetavam um crescimento para uns 500 milhões, no máximo, em três anos. No final do primeiro ano de operação, a Latasa vendeu 600 milhões de latinhas. O crescimento passou a ser de dois dígitos quase todos os anos, até chegar aos atuais 23,8 bilhões, agora produzidos pela Rexam (ex-Latasa), Crown Embalagens e Latapack-Ball.

Interessante lembrar que o primeiro folheto promocional feito para a latinha só nasceu em 1992. Antes dele, em 1991, a Latasa lançou um pequeno folder falando das vantagens da reciclagem das latinhas – a Reynolds foi a pioneira mundial tanto na produção de latas de alumínio para bebidas quanto na reciclagem.

O que explica esse sucesso estrondoso da embalagem? Fiz essa pergunta a mim mesmo e a outros colegas da Latasa e do mercado por muitos anos. As respostas passavam quase sempre por “conveniente”, “leve”, “bonita” e “fácil de transportar”. Ok, e o que mais?

Sempre achei a tese boa, mas carente de algo mais. Acredito que somente o tempo e a experiência dos anos, lastreados pelo olhar um pouco mais isento sobre o passado, ajudam a explicar isso.

A melhor explicação me ocorreu durante a leitura de “Empresas Feitas para Vencer” (HSM Editora, do original “Good to Great”), do guru Jim Collins, da Universidade do Colorado. O livro e seus filhotes venderam mais de cinco milhões de exemplares e influenciaram, entre outros, Jorge Paulo Lemann, que utilizou alguns conceitos de Collins em seus grandes negócios.

Para mim, o que melhor explica o sucesso da latinha é o “conceito do porco-espinho”, desenvolvido por Collins, a partir do conto “A raposa e o porco-espinho”, de Isaiah Berlin. Em resumo: “a raposa sabe muitas coisas, mas o porco-espinho sabe uma coisa importante – como sobreviver e se adaptar”. A raposa inventa fórmulas para agarrar o porco-espinho que, por sua vez, só usa uma estratégia: transforma-se em uma bola de espinhos apontada para todas as direções, sem chance para a raposa.

Como explica Collins, “não importa o grau de complexidade do mundo; um porco-espinho reduz todos os desafios e dilemas a simples ideias de porco-espinho. E o que importa mesmo é primeiro quem e não o quê”.

A Latasa, e depois os outros produtores de latinhas de alumínio, como Latapack-Ball e Crown, seguiram a mesma ideia simples e vencedora: “ok, nós só podemos produzir latinhas de alumínio em nossas fábricas, que foram desenhadas apenas para isso. Então, vamos ter os melhores para fazer melhor, mais barato e mais rápido”. A indústria não só sobreviveu como ampliou espaço, tomando mercado de outras embalagens ao lançar latinhas de formas, tamanhos e cores diferentes, mas sempre dentro do mesmo conceito porco-espinho – aplicar com tenacidade o princípio de que ser excelente é melhor do que ser bom. Para os negócios e para as pessoas.

Isso só foi e é possível até hoje porque uma geração de engenheiros, técnicos e designers foi formada junto com o mercado – aprendeu, inovou e ousou, tudo dentro da moldura simples de que um único produto pode ter vida longa, competitiva e de excelência, em diferentes ciclos. Qualquer semelhança com a Kombi não é coincidência.

O pessoal da indústria também entendeu logo a paixão pelo negócio. Tudo estava por ser feito, não havia limites. E se lançou ao desafio com motivação explosiva. As empresas não motivam ninguém – é o colaborador que precisa ter paixão e acreditar que está fazendo algo acima do muito bom: excelente. As empresas feitas para durarem mantêm seu princípio simplista de fazer melhor sempre, adaptando-se aos diferentes ciclos da própria vida. Sempre haverá uma fase para crescer, outra para consolidar e depois crescer de novo e assim sucessivamente. Aliás, isso não parece com a própria vida?

A ironia maior foi o ocaso da R. J. Reynolds, da mesma família dona da Reynolds Aluminum. Em meados da década de 60, o governo americano admitiu que cigarro fazia muito mal à saúde e iniciou um feroz cerco à indústria. A Philip Morris, concorrente da Reynolds, encarou o desafio de sobreviver e lucrar num novo ambiente, mas sempre no ramo de cigarros – manteve sua crença no conceito do porco-espinho.

A Reynolds, dona de uma marca excepcional como Camel, ao contrário, começou um desenfreado processo de diversificação de negócios; comprou uma empresa de contêineres cujo dono jogava golfe com um membro da família Reynolds e se meteu em negócios que nada tinham a ver com a ideia inicial. Fechou as portas. A Philip Morris está aí até hoje, mesmo disputando o título de uma das mais antipáticas empresas do mundo. Collins ressalta que o desafio dela agora é encarar o duro relacionamento da sociedade com o fumo.

Crescer a taxas médias anuais de dois dígitos, como a indústria das latinhas tem conseguido no Brasil, demanda mais do que competência – afinal, competência se adquire, com treinamento, experiência e uma dose de sabedoria. Já a paixão pelo negócio surge com força avassaladora, permanente e impulsiona a inovação e a perenização da atividade. Simples como a estratégia do porco-espinho. Que está aí até hoje – vencedora.

Latas

José Roberto Giosa (foto), jornalista e economista especializado em finanças, é autor do livro “A Moeda de Lata” e coordenou em 1991 o primeiro programa permanente de reciclagem de embalagens do país quando gerente de reciclagem da Reynolds Latasa, primeira empresa a produzir latas de alumínio para bebidas no Brasil.