05-08-2015

Incentivos à Economia Ambiental e respeito à Constituição

Ninguém discorda do juízo de que a Constituição de 1988 governa quem governa. Governa permanentemente quem governa transitoriamente, aqui no Brasil. Mas entre não discordar e praticar há uma distância que o tempo tem encurtado com certa lentidão. Há como quê uma má vontade contra a Constituição e essa má vontade se deve, inicialmente, ao fato de o novo texto normativo se caracterizar pelo seu decidido propósito de implantar no país uma democracia da melhor qualidade. Liberal, social e fraternal, todas pra valer. O que mexe muito com a cultura conservadora do país, instabilizando o emocional e as convicções de autoridades, pessoas influentes da Economia, educadores, formadores de opinião, enfim. Depois, é até certo ponto natural que os teóricos e profissionais do Direito demorem a se adaptar aos novos princípios e regras jurídicas, porque têm que passar pelo trabalho de rever teorias, conceitos, precedentes judiciais, peças por eles subscritas, anotações, glossários, apontamentos de aulas, o diabo a quatro, permito-me dizer.

Claro que esse vagaroso caminhar da Constituição a expõe por mais tempo a agressões da velha Ordem Jurídica. Estou a dizer: muita coisa incompatível com a nova ordem constitucional prossegue nos seus efeitos, até que o Poder Judiciário, notadamente o Supremo Tribunal Federal, venha a declarar tal incompatibilidade. Como sucedeu, por ilustração, com a velha e autoritária Lei de Imprensa, o nepotismo, a homofobia, a proibição de se interromper, voluntariamente, gravidez de feto anencéfalo. E como penso continuar a acontecer com o recorrente assunto do financiamento empresarial de eleições populares. Também assim com o tema a que chamo de Economia Ambiental, objeto do presente artigo.

Explico. Na Constituição, há vínculos funcionais indissociáveis entre o que ela designa por “desenvolvimento nacional” (inciso II do art. 1º), “ordem econômica” (art. 170, cabeça), “defesa do meio ambiente” (inciso VI do mesmo art. 170) e “mercado interno” (art. 219). Uma coisa a puxar outra, conceitualmente. Por isso que, primeiramente, o objetivo nacional permanente (cabeça do art. 3º) do desenvolvimento passa pelo otimizado desempenho da ordem econômica igualmente brasileira; ou seja, passa pelo otimizado funcionamento da ordem econômica enquanto “mercado”. Enquanto específico ou centrado espaço das relações de produção. A livre iniciativa dos empresários a operar como insubstituível mola propulsora do desenvolvimento em escala nacional. Ordem econômica, além do mais, que tem por explícito “princípio” (caput do art. 170) ou elemento de sua constitucional compostura “a defesa do meio ambiente”. Por fim, as três figuras de Direito assim conceitualmente enlaçadas a desembocar num tipo de mercado interno que “integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do país, nos termos de lei federal”. Qual o problema, então? Qual o problema, se as coisas estão assim funcionalmente inter-relacionadas? Uma a deflagrar a incidência da outra e ter em cada qual das outras a sua própria razão de ser como instituto de Direito Constitucional brasileiro?

Bem, o problema já foi antecipado. Uma Constituição nova e realmente comprometida com a democracia de três vértices (a liberal, a social e a fraternal ou solidária) demora a pegar. A sociedade como um todo, os teóricos e profissionais do Direito e principalmente os agentes do Poder Legislativo e do Poder Executivo puxam no freio de mão dos seus deveres para com a Magna Carta. Assinam o solene compromisso de cumpri-la – falo dos membros do Poder –, mas não a tempo e a hora. Donde o Poder Executivo, responsável maior pelas concretas políticas públicas em tema de desenvolvimento, Ordem Econômica, defesa do meio ambiente e vitalização do mercado interno, implementa todas elas como se fossem ilhas incomunicáveis. Sem a necessária visão de conjunto, por conseguinte. Volto a explicar.

Volto a explicar, sim, agora tomando por ponto de partida a questão do meio ambiente e seu vínculo mais direto com a Ordem Econômica. O que está escrito na Constituição? Que a defesa do meio ambiente é “princípio” da Ordem Econômica. Princípio, no sentido de parte elementar. A defesa do meio ambiente enquanto modo normativo de ser da Ordem Econômica. Integrante de sua compostura jurídica. A traduzir, então, que não existe Ordem Econômica sem a defesa do meio ambiente, ao lado, obviamente, dos demais princípios inerentes a ela, Ordem Econômica ou, simplesmente, mercado (princípios que, nos termos do art. 170, principiam com a “soberania nacional” e ainda passam pela “propriedade privada”, “função social da propriedade”, “livre concorrência”, “defesa do consumidor”, “redução das desigualdades regionais e sociais”, “busca do pleno emprego” e “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país”). Ajunto: mas de que forma a Constituição cuida dessa defesa do meio ambiente como dado elementar do regime jurídico da Ordem Econômica?

Aqui está, ainda uma vez, o inteiro teor do inciso VI do Art. 170: “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado, conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação”. Dois comandos ou duas normas num só dispositivo. O primeiro comando, a imprimir à Ordem Econômica um tipo de planejamento e exploração que leve o substantivo “defesa” a cumprir o polivalente papel de: a) proteção ou amparo ou resguardo ou tutela do meio ambiente, para que ele permaneça na posse de sua incolumidade ou intangibilidade ou integridade; b) recuperação ou saneamento ou restauração, para que ele, meio ambiente, se reentronize no gozo de sua íntegra compostura. Retorne ao seu estado de hígida fisicalidade, eventualmente conspurcada ou por qualquer forma degradada. Já a segunda norma constitucional, seu claro sentido está em que o planejamento e a exploração da Ordem Econômica hão de implicar um tratamento diferenciado ao meio ambiente, sim, mas a partir de um parâmetro logo explicitado: o grau de impacto nele ocasionado pelos produtos elaborados e serviços prestados a título de atividade econômica mesma. Produtos e seus processos de elaboração, serviços e seu modo de execução.

Que impactos? Ora, todo choque ou contratura ou agressão ou dano efetivamente infligido ou passível de ocorrer ao meio ambiente. Com a particularidade de que infligido ou em vias de sê-lo por interação com a Ordem Econômica enquanto mercado ou setor produtivo do país. O referido espaço das relações de produção de todo um povo, municipal, ou distrital, ou estadual, ou nacionalmente considerado. Tudo a propiciar a demonstrada conclusão de que tal ou qual atividade econômica é classificável como de nenhum impacto ambiental negativo, ou de grau insignificante de lesividade, ou de pequena monta, ou ainda de mediana ou mesmo de grandes proporções de agressividade, etc.

Com essa obrigatória adoção do impacto ambiental como critério de tratamento diferenciado a tudo que venha ou que possa incidir sobre o meio ambiente, o que se tem é o atingimento de mais um objetivo constitucional: forçar o Estado à adoção de políticas públicas aptas a, de um lado, estimular ou favorecer tudo aquilo que ponha o meio ambiente em condições de higidez; de outro lado, desestimular ou desfavorecer ou mesmo coibir tudo aquilo que o faça experimentar déficits de sadia funcionalidade. Noutros termos, é esse critério constitucional de tratamento diferenciado ao meio ambiente que vai orientar (não há outro parâmetro) a ação básica do Estado em face da Ordem Econômica. Ação que a Constituição mesma denomina de normativa e regularizadora, a se implementar nas tarefas de fiscalização, incentivo e planejamento, conforme o seguinte preceito: “Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”.

Quanto às políticas públicas de natureza tributária, também umbilicalmente ligadas a toda a Ordem Econômica, faz-se imprescindível a lembrança de que certos tributos, como o IPI e o ICMS, poderão assumir compostura seletiva em razão da essencialidade do seu próprio fato gerador ou do seu pressuposto material de incidência (inciso I do § 3º do art. 153 e inciso III do § 2º do art. 155, todos da Constituição). E o certo é que, ao falar do meio ambiente ecologicamente equilibrado como “essencial à sadia qualidade de vida” (caput do art. 225), a própria Magna Carta estende essa nota da essencialidade para toda empreitada ou para todo produto econômico especialmente favorecedor de tal equilíbrio. Como, verbi gratia, os produtos e atividades ou então os processos ou métodos de fabricação e de serviços cujo impacto ambiental seja nulo. Ou então de elevada taxa de reciclabilidade. Ou cuja durabilidade maior minimize seu impacto ambiental no tempo. Ou que impliquem sistemática e suficiente compensação igualmente ambiental. Ou que façam da possibilidade de coleta dos seus resíduos para reinserção no processo produtivo um meio de vida tão sem maiores riscos para a saúde humana quanto absorvente de expressivos contingentes de trabalhadores ou microempresas. Situação em que o princípio econômico do tratamento diferenciado ao meio ambiente melhor se interpenetra com o princípio identicamente constitucional da busca do pleno emprego e/ou da redução de desigualdades sociais. Confirmação, em suma, da imperiosidade do implemento de políticas públicas tributárias que sirvam a esse encarecido princípio do tratamento diferenciado ao meio ambiente como forma de cumprimento de um explícito dever estatal e também como reconhecimento de que nele próprio a Ordem Econômica brasileira tem um dos seus mais salientes traços de identidade.

Que a palavra de ordem seja uma só, por conseguinte: cumprir a Constituição brasileira. Instituições públicas fiéis às suas finalidades, agentes públicos fiéis a suas instituições, tudo nos marcos da Constituição de 1988.

Carlos Ayres Britto (foto), ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é escritor jurídico e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas – ABLJ.